Reinos proto-dinásticos

Neste momento começam a emergir, de sul para norte, os primeiros reinos proto-dinásticos. Os dados procedentes dos seus enterramentos sugerem que estas unidades políticas já existiam desde finais de Nagada II, ganhando poder e fixando raízes a partir daqui.

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Após o florescimento das comunidades que, aos poucos, se foram estabelecendo ao longo do vale do Nilo (1), começam a emergir, de sul para norte, os primeiros reinos proto-dinásticos. Os dados procedentes dos seus enterramentos sugerem que estas unidades políticas já existiam desde finais de Nagada II.
 
Localizados em locais muitos específicos temos: Qustul (Núbia), Hieracompolis, Nagada e Abido (2). Fruto de interações constantes e laços que se foram estabelecendo entre os três últimos, forma-se uma unidade política maior, o “reino proto-dinástico do Sul”, que acabaria por ganhar força e controlar todo o território (Parra et al., 2021). 
 
Contudo, quais foram os mecanismos que colocaram em marcha a formação destes jovens reinos? Parra et al. (2021: 18) sugerem que: 
(…) a passagem do sistema de parentesco que comandava as primeiras estruturas políticas egípcias (as distintas hierarquias repartidas ao longo do Nilo) para o sistema estatal que regeria depois a governação do Egipto faraónico pode ter surgido do confronto entre comunidades com o objetivo de conseguirem mais recursos ou bens de prestígio vindos de fora do Egipto.
Como as comunidades derrotadas tinham de ser controladas através de “formas estatais”, estas acabaram por invadir a estrutura social da hierarquia triunfante.
(…) três das hierarquias participantes acabaram por dominar o jogo e transformaram-se nos reinos proto-dinásticos de Hieracompolis, Nagada e Abido.
(Parra et al., 2021: 18)
A unificação destes centros políticos teria tido lugar algures nos começos de Nagada III. A isto seguir-se-à a verdadeira unificação do Norte e do Sul, juntamente com o aparecimento da Dinastia 0 (3).

Definindo o território egípcio…

A ocupação permanente de um território e o facto de se lidar constantemente com o mesmo local leva ao estabelecimento de laços afetivos e ao desenvolvimento de direitos territoriais por parte das populações. Isto irá gerar um sentimento de confiança dentro das comunidades, dando origem à conhecida «soberania» do território (Kemp, 1992). Mal o processo de estabelecimento e formação de um Estado se inicie, o domínio de uma determinada área, imediatamente se converte numa realidade. É aqui que começam a jogar os interesses de controlo do espaço assentes nas vontades e desejos do Homem.
 
A combinação de ambição e sentido místico da identidade fez com que os indivíduos e as comunidades entrassem numa situação de possível competição e mudou, de uma vez para sempre, a natureza da sociedade. A partir de assentamentos de agricultores em que não havia chefes, surgiram comunidades em que uns quantos líderes dirigiam a maioria.
(Kemp, 1992: 44)
Aos poucos, vão aparecendo elementos como a burocracia, o sistema judicial, a administração – as bases do poder faraónico. Barry Kemp (1992: 28) afirma que “a burocracia egípcia expressou uma ideologia implícita de ordenação social”. As ideologias vão contribuindo para a formação do futuro Estado egípcio, que se erguerá como uma única entidade política central.
 
Provavelmente Nagada fora derrotada durante as lutas pelo poder no Alto Egipto e os soberanos de Abido acabaram por conseguir exercer controlo por todo o país. Assim, aliaram-se a grupos da elite de Hieracompolis que se encontravam numa posição favorável, do ponto de vista estratégico, graças às valiosas matérias-primas a que tinham acesso diretamente do Sul (Bard, 2007).
 

Formação do Estado: mapa hipotético dos proto-estados mais importantes do Alto Egipto, quando se desenvolvem em finais do Período Pré-dinástico | Kemp, 1992

A elite da hierarquia triunfante transforma-se no único grupo de parentesco e lentamente vai incorporando nestas comunidades os comportamentos estatais aplicados aos derrotados. As famílias começam-se a unir através de relações matrimoniais que em muito potenciam todo o processo, juntando e unindo estes centros.
Durante o Pré-dinástico Nagada foi politicamente insignificante, Abidos foi o principal centro de culto do rei defunto e Hieracompolis seguiu sendo um importante centro de culto associado ao deus Hórus, símbolo do rei vivo.
(Bard, 2007: 97)
 
É possível que alguns grupos se tenham revoltado contra os centros mais poderosos, por uma questão de independência e de demonstração de poder, o que poderia ter resultado em alguns episódios bélicos. Irene Sagalés (2018: 16) afirma que :
Em resultado do crescimento destes «protorreinos», e com o propósito de obter a supremacia, surgiu entre eles uma grande rivalidade. Hieracompolis alcançou a vitória e unificou o Alto Egipto com um governo fortemente centralizado. Porém, a sede por novos territórios não acalmou (…) e os governantes vitoriosos de Hieracompolis decidiram abandonar a cidade natal e estabelecer-se em Tinis-Abidos, tendo em vista uma expansão mais para norte.

Enterramentos

Como sucedera nas culturas anteriores, são os locais de enterramento que nos fornecem os dados mais valiosos acerca destes novos reinos.

Os monarcas deste período foram sepultados em Abido, como sugerem os túmulos aí exumados: verdadeiros mausoléus, classificados como “principescos” pelas suas dimensões e enxovais, propositadamente afastados dos do resto da população. De acordo com Seidlmayer (1997: 23) a própria hierarquização levou à criação de cemitérios destinados apenas à elite – algo que já se vai notando desde inícios de Nagada I (4).

Distribuição dos cemitérios pré-dinásticos de Hieracompolis | Hierakonpolis Expedition © 2012-2019

 
Nas necrópoles U-J reconheceram-se enterramentos, inicialmente, reservados às elites e, mais tarde, destinados aos soberanos da Dinastia 0 e da I Dinastia – “sepultados em grandes túmulos sem estruturas visíveis (só cobertas com uma colina vertical ao nível do solo)” (Parra et al., 2021: 21).
 
Aqui também surgiram os primeiros indícios de escrita hieroglífica – signos ideográficos e fonéticos, datados entre Nagada III e a Dinastia 0 –, num túmulo que terá pertencido a um monarca, além de vários recipientes cerâmicos importados da Palestina.

Objetos encontrados em Umm el-Qaab | Necrópoles U-J, Abidos | British Museum (CC BY-NC-SA 4.0)

 
Os enterramentos mais opulentos eram fossas retangulares de larga dimensão, reforçadas com muros ou madeira; e em alguns casos, documentaram-se pequenas câmaras laterais destinadas a oferendas funerárias, como sucede no Túmulo 100 de Hieracompolis (Fuente, 2005) (5). Parra et al. (2021: 21) descrevem também os enterramentos e respetivas estruturas encontradas:
Uma grande estrutura retangular de tijolo delimitava um espaço cerimonial, conhecido como “palácio funerário”, e acompanhava como elemento imprescindível cada túmulo, separado a um quilómetro e meio de distância. Embora se desconheça a sua função ritual, sabe-se que eram destruídas antes da construção da do soberano seguinte.
 
(…) enterramentos como o Túmulo 100 de Hieracompolis, no qual se destaca a decoração pintada com elementos que apareceriam seguidamente na ideologia faraónica; ou o túmulo T23 dessa mesma necrópole, com formas que anunciam já as do complexo funerário de Djoser, o faraó da III dinastia. Em Nagada, destacam-se os grandes túmulos da necrópole T, com grandes dimensões, em especial o T5. Por seu lado, em Abido devem ser mencionados os enterramentos da necrópole U, com grandes túmulos. E justifica-se uma menção especial para o último túmulo ali escavado, o U-j, pelo seu fantástico enxoval funerário.
(Parra et al., 2021: 18)
O Túmulo 100 de Hieracompolis foi descoberto, entre 1898 e 1899, por F. W. Green e J. E. Qibell, e pertencera a um dos primeiros reis de Hieracompolis, da altura do período Guerzense (Nagada II). “Em concreto, (…) é uma fossa retangular de 5 por 2 metros, e 1’5 de profundidade, cujas paredes foram reforçadas com muros decorados com um friso decorativo que ocupa três das citadas paredes” (Fuente, 2005:27) (6).
 
Quando Green e Qibell lá chegaram o túmulo já tinha sido saqueado e o enxoval funerário havia desaparecido, restando apenas alguns ossos, fragmentos de vasos cerâmicos e artefactos em sílex.

Pintura mural do Túmulo 100 de Hieracompolis | Wikipedia (CC BY-SA 3.0)

 
O estilo pictórico que este túmulo apresenta é algo invulgar, comparativamente às representações artísticas da Época Arcaica: “(…) as figuras, cujos braços e pernas encontram-se muito estilizados, apresentam a cabeça de perfil e o torso de frente” (Fuente, 2005: 27).
Figuras com os braços em adoração | Wikipedia (CC BY-SA 3.0)
 
 Observando os painéis de fundo amarelo e as diversas figurinhas de coloração vermelha, negra e branca que povoam o cenário, reconhecemos um vencedor que golpeia com uma maça inimigos/prisioneiros; figuras que conduzem o gado com varas, e outras com os braços erguidos para o céu – como que em adoração; um rei que domina o caos e a desordem; e um governante sentado num dossel.
Personagem a conduzir o gado (C) | Wikipedia ©CC BY-SA 3.0
 
Os motivos que, talvez, mais chamam à atenção, dominando a composição pela grande dimensão que apresentam, são seis barcas – cinco de coloração branca e uma negra. Estas são símbolo da autoridade e poder, ao mesmo tempo que expressam o movimento do decorrer do tempo.
Guerreiro/rei a golpear os inimigos com uma maça | Wikipedia (CC BY-SA 3.0)
As pinturas do Túmulo 100 de Hieracompolis, importante centro religioso e político já na época pré-histórica, estão estreitamente relacionadas com a hierarquização, não dos indivíduos enterrados, mas sim das mesmas cidades que, já na época de Nagada II, se constituem como lugares centrais.
(Fuente, 2005: 26)
Encontramos bastantes representações de “inimigos”, onde o chefe, ou o rei, os vence e castiga, prendendo-os em fila. Aqui o soberano surge como o grande pacificador e dominador de um Mundo que se encontra em constante perigo, ameaçado pelas forças antagónicas do universo. A sua representação com um báculo e um látego – clara referência aos primeiros indícios da festa Sed – sugere a força e autoridade deste perante a comunidade.
 
As forças da natureza são representadas sob a forma de animais (leões) ou com aparência antropomórfica. Contudo, apesar do poder que possuem, encontram-se subjugadas perante o poderio que emana do grande governador, aquele que protege os seus.

Detalhes do Túmulo 100 de Hieracompolis | Wikipedia (CC BY-SA 3.0)

Do ponto de vista de Fuente (2005: 31) as pinturas do Túmulo 100 fazem sobressair uma figura que se distingue dentro da hierarquia social, pelas suas capacidades enquanto caçador e guerreiro – que na realidade não ficam muito atrás das competências que ostentará o faraó futuramente.
 
Em Hieracompolis encontraram-se três importantes objetos com cenas talhadas: uma cabeça de maça pertencente ao denominado rei Escorpião, e uma paleta e uma cabeça de maça do faraó Narmer – encontrados também Quibell e Green no templo de Hórus.
 
A Paleta de Narmer representa a unificação do território egípcio, é a “certidão de nascimento do Estado egípcio”, como dizia o Professor José das Candeias Sales numa conferência à qual tive oportunidade de assistir.
Paleta de Narmer Ángel M. Felicísimo | Ángel M. Felicísimo (CC BY 2.0)
As cenas nela representadas sugerem o ambiente bélico vivido na altura, com a figura do rei a subjugar os inimigos e a acumular prisioneiros de guerra. Durante muitos anos, isto induziu em erro grande parte dos egiptólogos que acreditavam que a formação do Estado egípcio estava vinculada a contendas entre reinos, enquanto instrumento de consolidação do território.
 
De facto, poderão ter sucedido alguns momentos bélicos entre as populações – estranho seria não terem acontecido, era inevitável que num momento ou outro acabassem por ocorrer. Porém, não olhemos para estas contendas territoriais como algo constante e que sucedia com frequência. Este processo, que mais tarde levaria à unificação de todo o território egípcio, viria a ser bastante demorado e vagoroso, concretizando-se aos poucos, sem pressões internas.
No próximo post vamos entrar no Egipto já unificado!
 

Bibliografia

Bard, K. A. (2007). La Aparición del Estado Egipcio. En I. Shaw, Historia del Antiguo Egipto. (J. M. Ortiz, Trad., pp. 90-125) Madrid: La esfera de los libros.
 
Fuente, M. (2005). Las culturas préhistóricas en Egipto. Madrid: Ediciones Liceus.
 
Kemp, B. J. (1992). Anatomía de una civilización. (M. Tusell, Trad.) Barcelona: Editorial Crítica.
 
Parra, J., Castellano, N., Almazán, M., & Ibáñez, M. (2021). Os Primeiros Faraós. A Fundação do Egipto. Edição Especial História, National Geographic. (R. Tavares, Trad.)
 
Sagalés, I. (2018). O Antigo Egito e a Mesopotâmia. Os primeiros impérios da história. (I. Mafra, Trad.) Rio de Mouro: Printer Portuguesa.
 
Seidlmayer, S. (1997). El camino de Egipto hacia la civilización. Em V. V. A., Egipto. El mundo de los Faraones. Madrid.
 
Shaw, I. (2000). The Oxford History of Ancient Egypt. (I. Shaw, Ed.) Oxford: Oxford University Press.
 

Outras obras a consultar

 
Wilkinson, Toby A.H. (1999). Early Dynastic Egypt. Londres e Nova Iorque: Routledge
 

Notas

(2) Na bibliografia portuguesa encontramos este reino com duas grafias, Abido ou Abidos. Por sua vez, nas obras espanholas surge apenas no plural, Abidos.
(3) O termo «Dinastia 0» não corresponde a uma linha reinante, mas sim a um grupo de governantes das cidades-estado incipientes, dos quais somente nos chegaram os nomes de uns quantos (Kemp, 1992: 60) – Hórus Ka (Sekhen), Hórus Narmer (Menés?) e “Escorpião” (Serek ?).
(4) Consultar post Culturas Pré-dinásticas (I).
(5) Este tipo de necrópoles também estão documentadas em Diópolis Parva, Tinis e na Núbia (Fuente, 2005: 27).
(6) Para aprofundar alguns aspetos que não descrevo nest post, recomendo a leitura de um artigo publicado na AcademiaEdu da Doutora María Amparo Arroyo de la Fuente, onde a autora analisa, de modo pormenorizado, os painéis do Túmulo 100 de Hieracompolis.
 

Cláudia Barros é licenciada em Arqueologia pela Universidade do Minho (2018). Em 2022 concluiu o Mestrado, na mesma área e instituição, com a dissertação “O Olhar de Gomes Eanes de Zurara sobre o Norte de Marrocos: estudo da paisagem de Alcácer Ceguer (Ksar Sghir)”.

Atualmente é colaboradora das revistas Egiptología 2.0 (Barcelona) e El Aldabón – Gaceta Interna del Museo Nacional de las Culturas del Mundo (México), e tradutora da Ancient History Encyclopedia, especialmente no âmbito da Assirologia e Egiptologia, a sua área de estudo e eleição.

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