Culturas pré-dinásticas (I)

A civilização egípcia é fruto de uma diacronia vastíssima de alterações e mudanças que se operaram no vale do Nilo. Tudo isto no meio de um deserto árido e nas margens de um caudaloso rio que ofereceu os recursos suficientes à sobrevivência humana.

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Rio Nilo | Britannica
A civilização egípcia é fruto de uma diacronia vastíssima de alterações e mudanças que se operaram no vale do Nilo. Tudo isto no meio de um deserto árido e nas margens de um caudaloso rio que ofereceu os recursos suficientes à sobrevivência humana.
 
No Alto e Baixo Egipto vão surgindo culturas que crescem e evoluem até se tornarem em autênticos proto-reinos. Estamos numa altura importantíssima da História egípcia, dado que começamos a retroceder aos seus primórdios. Esta época tem uma magnitude notável e fulcral na fundação das primeiras comunidades, as quais irão dar voz e força ao Estado egípcio, que em breve nascerá.
Contudo, os dados que temos relativamente a este período são ainda muito escassos e a necessidade de mais investigações é enorme. Conseguimos estabelecer e identificar alguns pontos importantes, porém não “escavamos” ainda tudo.
 
As primeiras culturas aparecem no Baixo Egipto (Norte), espalhando-se, em seguida, pelos contextos arqueológicos do Alto Egipto (Sul).
Mapa dos principais sítios arqueológicos das culturas de Maadi e Nagada | Ian Shaw
 
A Norte contamos três culturas neolíticas: uma em Merimde (oeste do Delta), uma no Faium e outra em Omari. Nestes locais identificou-se uma ocupação sazonal dos espaços, algumas zonas habitacionais, a prática de uma agricultura cerealífera (trigo e cevada), criação de gado e exploração do habitat e faunas fluviais.
 
 
Em Merimde os mortos eram sepultados com uma orientação preferencial, característica que não existe em Omari, enquanto, em Faium nem sequer se encontram túmulos, o que sugere práticas de enterramento ainda mais simplistas.
(Parra et al., 2021: 14)
 
Como mencionei no meu último post, a ocupação registada em Nabta Playa (Alto Egipto) deixou vestígios bastante interessantes no que toca aos modos de vida neolíticos, em comparação com estes locais em específico.
 
Em Nabta, um possível centro de reuniões de grupos neolíticos migratórios, destacam-se construções de dimensão modesta, como uma estrutura circular com materiais pétreos, acompanhada por vários alinhamentos de pedras, orientados pelas estrelas – Sírio e a Estrela Polar –, e ainda túmulos, colinas artificiais e estruturas muito semelhantes a altares (Parra et al., 2021).
 
Recinto circular interpretado como um calendário em Nabta Playa | Wikipedia

Ao mesmo tempo que a cultura de Omari se vai desenvolvendo, o Pré-dinástico egípcio conhece nas zonas médias do território uma outra cultura, conhecida como Badari (ou cultura Badariense). Esta designação agrupava uma série de sítios arqueológicos, distribuídos ao longo de mais de trinta quilómetros pela margem oriental do Nilo. Badari conta com mais de seiscentos túmulos, com incríveis enxovais funerários e quarenta povoados ainda pouco estudados.

Inicialmente acreditava-se que esta se estendia apenas pela zona de El Badari, porém, intervenções arqueológicas mais recentes puseram a descoberto vestígios em zonas meridionais e orientais (Halicarnaso, 2020). Esta cultura assemelha-se em muito às culturas do Norte, dado que os povoados só eram ocupados por épocas muito específicas do ano. Contudo, as diferenças notam-se nos locais escolhidos e nas suas práticas de enterramento.
 
É em El Badari que temos os primeiros registos de agricultura no vale do Nilo (Shaw, 2000); além de ser uma cultura bastante famosa pelas necrópoles no deserto. Se os locais do Norte são quase ermos, os de Badari estão repletos de informação; aqui os mortos recebem uma atenção muito especial (Parra et al., 2021).
 
Os seus contextos funerários constituem-se como fossas ovaladas escavadas no chão, que vão apresentando, em alguns casos, uma espécie de estrado, onde era colocado o corpo, em posição fetal, virado para o lado esquerdo, olhando para oeste e com a cabeça para sul.
 
Os enxovais são o que mais chama à atenção. Distribuídos à volta do corpo do defunto, evidenciam uma distribuição desigual dos recursos e da riqueza, o que nos remete para uma certa estratificação social. De acordo com Halicarnaso (2020: 15), relativamente a esta questão da hierarquia: “Esta tese é ainda reforçada pelo facto de os enterramentos mais ricos se encontrarem separados dos restantes em zonas concretas da necrópole”.
 
O elemento mais característico desta cultura são as cerâmicas que acompanham os mortos nos túmulos (Shaw, 2000): normalmente, são peças cerâmicas de argila do vale do Nilo, trabalhadas à mão e, nas quais, são utilizados desengordurantes orgânicos. As formas mais comuns são copos e tigelas de bordos retos e bases arredondadas. As superfícies apresentam uma decoração impressa, com recurso a um pente, e polidas logo de seguida.
 
Na cultura material badariense podemos incluir alguns pentes, braceletes e contas de osso e marfim, além de estatuetas femininas de argila e marfim, de grande variedade estilística.
Localização de Badari | Condor De Paul
Todos estes objetos eram utilizados em pequenos povoados ou aldeias de caráter temporal, já que (as suas populações) se moviam horizontalmente pelo território depois de um certo período de ocupação. Por este motivo, todas as construções eram perecíveis, de modo que as mais estudadas são poços e zonas de armazenamento (Halicarnaso, 2020: 15). 
 
É bastante possível que os assentamentos encontrados nas zonas desérticas, na região de El Badari, sejam residências sazonais; ao passo que, os povoados permanentes talvez se localizassem nas planícies perto dos locais inundados pelo Nilo – hoje cobertos por aluvião e por isso nos sejam desconhecidos (Shaw, 2000).
 
Os seus habitantes dedicavam-se à agricultura e à pecuária. Nos espaços de armazenamento foi encontrado trigo, cevada, lentilhas e tubérculos. A pesca detinha uma certa importância, em relação à caça, que apresentava ser uma prática um pouco mais marginal, supérflua.
 
Cabe destacar que as gentes do Badariense se espalharam pelas montanhas vizinhas do atual Deserto Oriental, alcançando o Mar Vermelho (Halicarnaso, 2020: 15).
 
As relações com o Mar Vermelho estão testemunhadas pela presença de vestígios de conchas nos seus túmulos (Shaw, 2000), o que evidencia a deslocação destas populações até às zonas próximas do Mar Vermelho. É, também, possível que estes tenham chegado à Península do Sinai, de onde traziam o cobre, e, talvez um pouco mais, até à Palestina – apesar de esta não se encontrar demonstrada arqueologicamente.
Ruínas em Buto | Wikipedia
No Baixo Egipto vai começando a emergir uma outra cultura, ao mesmo tempo que a de Badari vai crescendo nas zonas médias egípcias (Halicarnaso, 2020), e que apanha a segunda metade de Nagada I, continuando até Nagada II (Shaw, 2000). Encontramos os seus principais sítios arqueológicos em Maadi (Cairo) e em Buto (zona do Delta). Mais tarde, Maadi juntar-se-à a Buto (3600 a.C.) formando a cultura de Maadi-Buto.
 
Fora nesta zona que se haviam já descoberto os indícios e assentamentos neolíticos mais antigos do Egipto – Merimde, Beni Salama, El Omari e na região do Faium –; sendo nestes que se encontra a tradição a partir da qual se desenvolveu a cultura material de Maadi (Shaw, 2000).
 
As suas populações dedicavam-se à agricultura e à criação de animais. Nas intervenções arqueológicas aqui realizadas exumaram-se jarras com resíduos e restos de gramíneas (trigo e cevada) e leguminosas (lentilha e ervilha). Os vestígios de faunas domésticas (cabras, porcos, bovinos, ovelhas, cães e burros – estes últimos, utilizados como meio de transporte de mercadorias mais pesadas) são muito superiores aos de fauna selvagem.
 
A metalurgia e os objetos metálicos são uma constante – arpões, agulhas, espátulas e machados, que noutras comunidades apenas surgem em pedra. As evidências que estas comunidades nos deixaram, demonstram que já tinham estabelecido contactos com a Síria e a Palestina, o que possa talvez ter influenciado esta parcial substituição da pedra pelo metal. As influências palestinas também se sentem na utilização do sílex.
 
Dos sítios arqueológicos de Maadi podemos destacar o cemitério e o próprio povoado. A falta de conexão entre o Alto e Baixo Egipto, antes do estender de Nagada II, vem muito bem demonstrada no registo arqueológico maadiense, em que todos os seus aspetos e os próprios assentamentos diferem em todos os aspetos, daqueles com uma cronologia semelhante e que se encontram a sul (Shaw, 2000).
 
Identifica-se aqui uma verdadeira desconexão cultural entre ambas as regiões. Daquilo que iremos analisar mais à frente em Nagada II (post Culturas egípcias II), os cemitérios de Maadi não nos oferecem tanta informação, como sucede com os seus povoados, onde abunda um conjunto de dados mais vastos e claros.
 
Podemos assim apontar algumas diferenças residuais. Temos casas de planta oval, de 3x5m de superfície, até 3m de profundidade, zona à qual se acedia através de uma passagem escavada (Halicarnaso, 2020). O muro de uma destas estruturas estava revestido com pedra e tijolos de barro por cozer, de argilas do Nilo (Shaw, 2000). Os indícios de sedentarização aqui, são bastante fortes: a existência de habitações e lares, onde se identificaram jarras e objetos semienterrados, assim como as significativas evidências de utilização para fins domésticos, sugerem que seriam efetivamente locais de residência permanente.
 
As restantes estruturas que surgem em Maadi, aparecem um pouco por todo o restante território egípcio: anexos externos, zonas de armazenamento e casas de planta retangular, das quais apenas se conservaram os alicerces de alguns muros, possivelmente construídos com materiais vegetais (Shaw, 2000).
 
A própria cerâmica é fabricada com argila aluvial e surge em formas globulares, com bases largas e planas, colos estreitos e bocas abertas que vão alargando para fora (Halicarnaso, 2020); em raras exceções apresentam uma decoração incisa, depois da cozedura (Shaw, 2000).
 
Dados como estes em nada se comparam com aqueles que vamos tendo para o Alto Egipto, com produções completamente díspares e com particularidades muito distintas.
 
Os mortos são enterrados com um enxoval funerário muito reduzido – uma ou duas peças em cerâmica, ou por vezes mesmo nada. Os enterramentos discretos levam-nos a pensar que estamos perante comunidades que não sofreram grandes mudanças e evoluções sociais desde o Neolítico, e que carecem de uma hierarquia social.
 
Os túmulos são muito simples e modestos, surgindo normalmente sob a forma de buracos ovalados, com o cadáver colocado em posição fetal, envolvido por um tecido. Em Maadi encontraram-se, aproximadamente, 600 túmulos, o que não é quase nada em comparação com os 15000 encontrados a sul (Halicarnaso, 2020).
 
A fase final de Maadi – representada pelos estratos mais recentes da cultura de Buto – é contemporânea da metade de Nagada II. Nos seus estratos arqueológicos podemos observar uma clara transição entre Maadi e o proto-dinástico, e afirmar que o final desta cultura se pautou por um processo de assimilação cultural, e não algo brusco e repentino (Halicarnaso, 2020).
 
É provável que graças à localização fluvial e marítima, Buto estivesse estrategicamente bem situada para o grande comércio e quiçá chegara a ter um palácio para os governadores locais (Midant-Reynes, 2007: 92).
 
Os dados que nos oferece Buto são menos chamativos que os de Nagada, houve ali um processo de desenvolvimento cultural que também conduziu a uma considerável complexidade cultural, a qual acabou por originar uma sociedade caraterizada pelas suas próprias crenças, mitos, ritos e ideologia. Algo necessário para o grande passo que a História egípcia viria a dar entre Nagada III e o Pré-dinástico.
 
Em 3600 a.C., a cultura de Maadi-Buto começou a estabelecer contacto com Nagada II, no sul, com a Ásia pela Palestina (via terrestre), com a costa norte da Síria e, consequentemente, com a Mesopotâmia.
 
As relações entre a cidade mesopotâmica de Uruk e a cidade de Buto foram tão frutíferas que chegaram mesmo a partilhar uma técnica construtiva. Por sua vez, os laços comerciais com a franja palestina ficaram assinalados pela presença de cerâmica com pés muito típicos, com o colo, o bordo e as asas decoradas e manufaturadas com uma argila calcária (Halicarnaso, 2020: 19).
 
E a história ainda não acaba aqui…
Fica atento(a) que em breve sairá a segunda parte deste post! Até já!
 

Bibliografia

Grimal, P. (1988). Histoire de l’Égypte Ancienne. Paris: Libraire Arthème Fayard.
 
Halicarnaso, H. (2020). Egipto antes de los faraones: el período predinástico. Egiptología 2.0(19), 14-19.
 
Midant-Reynes, B. (2007). El Período Nagada. Em I. Shaw, História del Antiguo Egipto (J. M. Ortiz, Trad.).
 
Parra, J., Castellano, N., Almazán, M., & Ibáñez, M. (2021). Os Primeiros Faraós. A Fundação do Egipto. Edição Especial História, National Geographic. (R. Tavares, Trad.)
 
Shaw, I. (2000). The Oxford History of Ancient Egypt. (I. Shaw, Ed.) Oxford: Oxford University Press.
 

Cláudia Barros é licenciada em Arqueologia pela Universidade do Minho (2018). Em 2022 concluiu o Mestrado, na mesma área e instituição, com a dissertação “O Olhar de Gomes Eanes de Zurara sobre o Norte de Marrocos: estudo da paisagem de Alcácer Ceguer (Ksar Sghir)”.

Atualmente é colaboradora das revistas Egiptología 2.0 (Barcelona) e El Aldabón – Gaceta Interna del Museo Nacional de las Culturas del Mundo (México), e tradutora da Ancient History Encyclopedia, especialmente no âmbito da Assirologia e Egiptologia, a sua área de estudo e eleição.

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