
Jacques de Morgan foi o primeiro a sugerir que os sítios arqueológicos de Nagada eram os restos de uma população pré-histórica. Posto isto, Flinders Petrie prontificou-se a comprovar a posição de Morgan. Depois de escavar milhares de túmulos conseguiu estabelecer a primeira cronologia para o Pré-dinástico egípcio (Midant-Reynes, 2007).
É então aqui que Petrie encontra, em 1892, mais de 3000 enterramentos ovais em fossa, escavados na areia, com corpos colocados em posição fetal, a repousarem sobre o seu lado esquerdo, envolvidos em pele de animal (cabra ou gazela) e, por vezes, cobertos por um manto – que também cobria as oferendas.
Os cadáveres levavam consigo um enxoval funerário bastante generoso, onde se incluíam alguns animais domésticos (cabras, bovinos, ovelhas, porcos). Acima de tudo, estas oferendas pretendem assinalar a identidade do defunto (Midant-Reynes, 2007).
No decorrer do início da fase Nagada I, a estratificação social parece ter incrementado bastante. Os túmulos mais ricos agrupam-se em locais específicos das necrópoles, contando com enxovais cada vez mais opulentos.
Os enterramentos apresentam uma dimensão bastante mais ampla, comparativamente com o que que se registava na cultura Badariense. Os mais simples apenas possuem um cadáver. Os coletivos surgem com grande frequência, sobretudo aqueles formados por uma mulher e um recém-nascido (Midant-Reynes, 2007). Começam a aparecer enterramentos de maiores dimensões, e sarcófagos em madeira e argila

Este período mostra-se uniforme em todos os sítios arqueológicos, que são muito semelhantes aos de Badari, o que talvez venha a indiciar uma estreita relação entre ambas as culturas. Béatrix Midant-Reynes (2007: 78) coloca a hipótese de que sendo os rituais e tipos de oferendas tão semelhantes, a cultura de Badari parece ser uma versão mais antiga e regional de Nagada I.
Os restos exumados relativos a povoados são, neste caso, muito reduzidos e escassos. Acerca das estruturas e habitações temos poucos dados, devido à perenidade dos materiais utilizados para a sua construção – argila e materiais orgânicos (Halicarnaso, 2020). Desta forma, apenas podemos teorizar e formular meras hipóteses acerca das formas de vida e sobrevivência das populações de Nagada I, deixando algumas questões ainda por responder.
Em Nagada I encontraram-se maças discóides (pedra, argila, calcário) e paletas para cosméticos – usadas para esmagar, desfazer e triturar os pigmentos usados na maquilhagem –, cujas formas ovais evoluem para paletas zoomorfas (peixes, tartarugas, elefantes, pássaros, gazelas, …). Os objetos de metal apresentam uma certa diferença relativamente aos da Badariense, possuindo um reportório de formas e objetos muito mais vasto, contando-se alfinetes, contas, braceletes e arpões (Halicarnaso, 2020).
A cerâmica vermelha polida começa a florescer em formas variadas, com distintos padrões de decoração, que vão desde esculturas nos bordos a desenhos geométricos, animais (hipopótamos, crocodilos, lagartixas, flamingos, escorpiões, gazelas, girafas, bovinos, …) e vegetais (Midant-Reynes, 2007).
Os vestígios cerâmicos das culturas de Nagada I e II, no Alto Egipto, têm constituído (…) uma fonte de informação valiosa para os arqueólogos. A sua decoração proporciona uma imagem ressonante de sociedades já totalmente sedentarizadas, dedicadas à agricultura e ao pastoreio e à exploração de recursos fluviais e ribeirinhos.
(Parra et al., 2021: 14)
Os motivos decorativos da cerâmica (cenas de caça, de ribeiras, de figuras humanas e do deserto) demonstram a existência de um sistema hierárquico já formado e uma ideologia bem definida, e em constante desenvolvimento, na qual o parentesco era essencial enquanto guia para estabelecer relações, dentro e fora, das comunidades (Parra et al., 2021).
Estamos perante uma sociedade bem estruturada e organizada, com uma certa tendência para uma organização hierárquica, na qual podemos ver de forma embrionária os principais aspetos da civilização faraónica (Midant-Reynes, 2007).
A fase seguinte desta cultura é conhecida como Nagada II, ou Guerzense (que recebe o nome do sítio arqueológico de Al-Gerzeh), não sendo mais do que uma clara evolução da Nagada I.
Nagada I havia-se estendido até ao sul, em direção à Núbia e à segunda catarata do Nilo, e para o norte, cobrindo todo o Médio Egipto, estabelecendo contacto com a comunidade de Maadi-Buto (Baixo Egipto). A cultura de Nagada II é resultado de um processo de expansão, que parte do seu núcleo meridional e se difunde até ao norte, alcançando o extremo oriental do delta, chegando ao sul e entrando em contacto os núbios (Midant-Reynes, 2007).
Neste novo período, observa-se como a cultura material do Alto Egipto se vai deslocando lentamente para norte, até se transformar no período seguinte no porta-estandarte de todo o vale do Nilo, desde Elefantina até ao delta, o que significa uma unificação cultural do Egipto antes da unificação política, que ainda demoraria alguns séculos.
(Parra et al., 2021: 16)
A cultura guerzense alcançou um alto grau de maturação, sobretudo a nível funerário e religioso, sendo fruto de uma evolução lenta, durante a qual vai introduzindo, paulatinamente, novas tecnologias, como a metalurgia, e novas estruturas sociais.
Estamos perante um momento de grandes transformações no território egípcio. A desertificação que se regista nas zonas de savana próximas do Nilo, conduziu à sedentarização definitiva destas comunidades, assistindo-se à deslocação das populações estabelecidas nos locais desérticos para as margens e campos irrigados pelo Nilo. O sedentarismo impõe-se e o nomadismo finalmente desaparecera.
A perda do ambiente semiárido saariano como fonte principal de alimento (caça e recoleção) conduz a uma alteração significativa nos modos de vida humanos (Parra et al., 2021). É introduzida a agricultura e a pecuária, a partir daqui estabelecidas como as fontes de alimento das comunidades da região durante o Guerzense.
Os povoados vão surgindo ao longo de todo o rio, local onde se encontrava a terra cultivável. Regista-se, a partir daqui um paulatino desenvolvimento das práticas agrícolas e a adoção de sistemas de irrigação dos campos, controlados por diques, que aproveitavam as cheias anuais do rio.
Temos prova do uso de diferentes tipos de cevada, trigo, linho, frutos e verduras, além da criação de animais como ovelhas, porcos, cabras e bovinos. O cão disfrutava de um lugar especial no seio destas comunidades. Os peixes também estavam incluídos na dieta egípcia (Fuente, 2005).
A presença de um núcleo denso de população num espaço delimitado estava a tornar mais complexa a sociedade. O período Guerzense foi também um período de alteração na forma de apreender o mundo por parte dos egípcios. Assim se explicam as alterações visíveis nos túmulos, onde, além das práticas habituais registadas desde o período anterior, apareciam outras novas, em especial a distribuição dos enterramentos, com os mais ricos agrupados em locais específicos das necrópoles.
(Parra et al., 2021: 16)
Tendo em conta as enchentes do Nilo e a erosão provocada por pequenos cursos de água ou ribeiros, é possível que estes tenham acabado por destruir o que restaria dos vestígios dos assentamentos pré-históricos, durante este período e os que o antecederam. Porém, é indubitável que as estruturas apresentassem uma planta retangular e fossem feitas de adobes, elaboradas com recurso a primitivos moldes de madeira (Fuente, 2005).
A sociedade de Nagada II parece ter sido a base essencial para o desenvolvimento de uma classe de artesãos especializados e ao serviço das elites. Contudo, para isto ser possível estas populações deviam possuir uma economia capaz de manter estes grupos de artistas, além de terem criado centros urbanos que reuniam clientes, oficinas, aprendizes e os serviços necessários ao comércio deste tipo de bens (Midant-Reynes, 2007).
De acordo com Fuente (2005: 26): “As escavações revelaram a existência de oficinas, algumas delas equipadas com fornos para o fabrico de cerâmica, que correspondem com a profusa produção artística da cultura guerzense.”
Um aspeto decisivo na evolução social do Período Pré-dinástico é a formação de um modelo de povoamento diferenciado. Além de regiões agrícolas com assentamentos em aldeias, formaram-se povoações centrais, as incipientes cidades.
(Seidlmayer, 1997: 21)
Dá-se início à exploração das pedreiras mais próximas, além de um notável desenvolvimento nas formas de trabalhar pedras de qualquer tipo (alabastro, mármore, basalto, diorito, calcário, …). Começam a fabricar-se vasos de pedra, a cerâmica a torno é introduzida nas comunidades, surgem vasos decorados com pastas pintadas a tinta vermelha, desenvolve-se a joalharia e há um incremento da metalurgia do cobre, com um aumento de ferramentas neste material.

A produção cerâmica introduz um novo tipo de cerâmica mais grosseira, depositada em alguns enterramentos, fabricada com argila calcária dos wadis do deserto, com desenhos em ocre e fundos claros e em cor creme, onde impera uma decoração figurativa (barcos) e geométrica (linhas onduladas, triângulos, axadrezados, espirais,…).
O motivo mais comum é, sem dúvida, o barco. A representação de barcos evidencia a fulcral importância do rio Nilo no quotidiano destas populações, assim como na sua sobrevivência e modo de subsistência. Eram os barcos que traziam matérias primas de outras regiões, como incenso, marfim, peles, ouro, ébano.
A sua representação pode também evidenciar a origem da barca solar, enquanto elemento simbólico de viagem ao submundo e muito relacionado com o sistema de crenças egípcio.
(…) a partir desta época o Nilo, que flui de sul para norte, transformara-se num rio mítico por onde navegaram os primeiros deuses. A relação entre a ordem humana e a ordem cósmica já se estava a estabelecer.
(Midant-Reynes, 2007: 86)
Os túmulos de Nagada II convertem-se em autênticas moradas terrestres e contêm, por vezes, algumas salas bastante mobiladas. Destacam-se ainda os amuletos, pequenas estátuas e objetos de luxo decorados com temas que representam animais – leões, touros, bovinos, hipopótamos, falcões (Grimal, 1988). Começa a definir-se o mundo ideológico guerzense, e com este as bases da ideologia faraónica que acompanhará as centúrias seguintes da história egípcia.
Podemos encontrar túmulos quer para ricos, quer para pobres. Os enterramentos incluem um amplo repertório de tipos de túmulos. Os corpos são enterrados em fossas ovaladas, redondas ou retangulares, reforçadas com paliçadas de madeira e muros, revestidos de adobe. Temos também enterramentos em recipientes de cerâmica.
Os túmulos são maiores e mais elaborados, com enxovais funerários ricos e abundantes. Nos casos de túmulos de planta retangular, nestes aparecem compartimentos especiais para as oferendas. Começam a aparecer ataúdes de madeira e barro.
Esta variedade de túmulos evidencia uma certa estratificação social, em que os grupos sociais se vão diferenciando, segundo os recursos económicos e o prestígio social. Começamos, assim, a ver diferenças nas pessoas.
Há um notável incremento nos rituais. As práticas funerárias são cada vez mais conscientes, onde se assinala uma maior preocupação com o cadáver, envolvido em tiras de linho – é em Nagada II que encontramos os primeiros indícios de faixas a envolver as múmias. As oferendas encontram-se organizadas e agrupadas no interior dos túmulos. Em alguns locais, aparecem pequenas câmaras laterais onde as oferendas seriam depositadas (Fuente, 2005).
Foram detetadas práticas inéditas, como esqueletos sem cabeça, túmulos com mais de um corpo, cadáveres com sinais de sacrifícios humanos, entre outros (Halicarnaso, 2020).
As paletas de maquilhagem – objetos de carácter religioso e ritualístico –, em comparação com Nagada I, reduzem bastante em número, porém, começam a ser decoradas com relevos, passando de um uso quotidiano para fazer parte do grupo de objetos que acompanhavam o defunto no túmulo.
É de sublinhar ainda os contactos exteriores que estas comunidades foram estabelecendo com locais chave, como a Palestina (cerâmicas), com a Mesopotâmia (selos cilíndricos), com Elam e a Suméria (lápis-lazuli). As elites esforçavam-se ao máximo para poderem controlar de perto o fluxo de tais produtos, considerados peças de luxo, demonstrando uma hierarquia já formada no seio destas comunidades, organizadas num sistema estratificado bastante poderoso (Parra et al., 2021).
Os excedentes, fruto dos bons anos agrícolas e da produção crescente, levam a um considerável aumento da população, ao incremento e desenvolvimento da estratificação social, da divisão do trabalho e da evolução dos sistemas políticos até aos conhecidos Estados. A partir daqui, o desenvolvimento civilizacional egípcio só aumentará.
Nem todas as unidades “políticas” egípcias disseminadas ao longo do Nilo se encontravam ao mesmo nível de desenvolvimento, mas parece inegável que a sul três eram especialmente relevantes (Hieracômpolis, Nagada e Abidos) e tinham uma estrutura social complexa e uma maturação como grupo que permite qualificá-las como reinos protodinásticos (Parra et al., 2021: 16).
As primeiras manifestações artísticas destas culturas denotam as origens da arte egípcia, no que toca à produção cerâmica, ao trabalho da pedra, à conceção arquitetónica e, também, à peculiar forma de representação pictórica; mas, sem dúvida, o aspeto mais transcendente, do ponto de vista artístico, é a fixação de motivos iconográficos que gozariam de um amplo desenvolvimento, simbólico e político, até à época ptolomaica (Fuente, 2005: 1).
No próximo post iremos aventurar-nos pela cultura de Nagada III que irá abrir portas aos reinos proto-dinásticos e à unificação do território egípcio!
Bibliografia
Fuente, M. (2005). Las culturas préhistóricas en Egipto. Madrid: Ediciones Liceus.
Grimal, P. (1988). Histoire de l’Égypte Ancienne. Paris: Libraire Arthème Fayard.
Halicarnaso, H. d. (2020, Abril). Egipto antes de los faraones: el período predinástico. Egiptología 2.0(19), 14-19.
Midant-Reynes, B. (2007). El Período Nagada. Dans I. Shaw, História del Antiguo Egipto (J. M. Ortiz, Trad.).
Parra, J., Castellano, N., Almazán, M., & Ibáñez, M. (2021). Os Primeiros Faraós. A Fundação do Egipto. Edição Especial História, National Geographic. (R. Tavares, Trad.)
Seidlmayer, S. (1997). El camino de Egipto hacia la civilización. Dans V. V. A., Egipto. El mundo de los Faraones. Madrid.
Shaw, I. (2000). The Oxford History of Ancient Egypt. (I. Shaw, Éd.) Oxford: Oxford University Press.
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